segunda-feira, 2 de maio de 2016

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Bom dia Críticos e Críticas!

Quem vos fala rapidamente é a Ana Carol e eu tenho o grande prazer em anunciar algo novo aqui no blog. Essa semana não vamos fazer uma resenha comum (colocando tópicos e atribuindo notas à cada um, como fazemos usualmente).
Essa semana temos uma colunista convidada! Esthela Costa é uma grande amiga, mega fã da Beyoncé e eu a convidei para fazer a resenha do álbum do momento: Lemonade! Então, sem mais delongas, sejam bem vindos à nossa primeira Crítica Musical!


Capa do álbum Lemonade da Beyoncé. Fonte: http://hiphopdx.com/

Há uma semana me foi dada uma tarefa incrível e, simultaneamente, árdua: escrever uma crítica sobre “Lemonade”, o novo álbum da minha ídola Beyoncé.

Desde o lançamento da obra eu estou imersa no mundo rico de arte, informações e referências trazido pela Bey. Após o lançamento do filme apresentando o novo trabalho da cantora, acompanho uma enxurrada de textos, análises, fofocas e, óbvio, não me canso de ouvir as 12 faixas.

A última delas, “Formation”, foi um teaser lançado fevereiro e apresentado no famoso intervalo do Super Bowl (pra quem não sabe, é a grande final da liga de futebol americano nos EUA e é aguardado pelo país inteiro). Com “Formation” o mundo fez uma descoberta incrível: apesar do lindo e longo cabelo loiro, a Beyoncé é negra.

Imagem do sketch do Saturday Night Live, com uma mulher branca assustada e uma frase em que se lê: "o dia em que Beyoncé virou negra".

Com “Lemonade”,  álbum do qual “Formation” é parte, o mundo teve que lidar com o fato de que ainda com todo dinheiro, notoriedade e influência, Beyoncé continua mulher e negra, nascida no sul dos EUA (área historicamente marcada pela cultura escravocrata), cidadã num país marcado pelo racismo e machismo e, há pouco mais de quatro anos, mãe.

Blue Ivy (ao centro), filha da Beyoncé, no clipe de "Formation", Fonte: www.awesomelyluvvie.com

Assim como muitas mulheres negras que vivem em países de passado marcado pela escravidão, ela enfrenta desde que nasceu o peso e a luta que é ser mulher negra nesse mundo.  Ela ressalta isso em seu filme ao citar Malcom X, que disse: "A mulher mais desrespeitada da América é a mulher negra. A pessoa mais desprotegida da América é a mulher negra".

Lemonade” é um verdadeiro tapa na cara da sociedade, ele abre feridas geradas pelo racismo e machismo, ele nos faz refletir sobre tudo o que passamos e nos fortalece para o que virá.

O novo álbum da Bey nos faz refletir sobre a solidão da mulher negra, sobre a depreciação da estética afro, sobre extermínio da juventude negra, sobre apropriação cultural, sobre a pressão social de se ter uma vida perfeita, sobre ser uma mulher empoderada e sobre aceitação.

Beyoncé em uma cena de Lemonade cercada de mulheres e meninas negras. dentre elas Winnie Harlow, Zendaya Coleman, Amandla Stenberg, Quvenzhané Wallis, e a dupla de cantoras Chloe e Halle.

A  "Becky with the good hair" ("Becky do cabelo bom", em tradução livre) é o retrato gritante da chamada solidão da mulher negra. Não vou discutir quem é ou deixa de ser a Becky. A Becky é o que nós, mulheres negras, nunca seremos, por mais que alisemos ou alonguemos o cabelo. Nós jamais seremos a moça do cabelo naturalmente liso, de cor clara, com traços europeus. Nós não somos as mulheres ditas bonitas pelos olhos da sociedade em que vivemos. 

E mais, para piorar, nós não somos a primeira escolha da maioria dos homens para um relacionamento sério, mas o somos apenas para satisfazer o desejo sexual de alguns deles. Bem-vindos ao que o movimento feminista negro chama de "solidão da mulher negra".

É bastante comum eu ouvir histórias de irmãs, eu inclusive, que nunca tiveram um parceiro de relacionamento firme por muito tempo durante a adolescência ou mesmo na vida adulta. Já ouvi bastante "ah mas é preferência do cara". Porém, quando a história se repete com mais de uma pessoa, em mais de um lugar do mundo, eu posso ter a certeza que não é "preferência" ou "gosto".

Imagem em que se lê: "#meuamigosecreto acredita que a solidão da mulher negra é bobagem e que o amor não tem cor". Fonte: www.tumblr.com

A Becky me lembrou a história de quando minha avó conheceu a minha mãe e disse ao meu pai que ele deveria "clarear a família" em vez de se relacionar com a minha mãe (detalhe que minha avó paterna é filha de índia com negro).

A Becky lembrou os poucos casinhos que tive na adolescência porque além de negra, eu estava "acima" do peso. A Becky me lembrou o dia em que ouvi um cara dizer que não se relaciona muito com mulheres negras porque "a mulher negra gosta muito de mandar no cara". Mas acabou que ele namorou uma Becky loira que sacaneou ele.

A Becky me lembrou a entrevista da Tais Araújo no programa do Lázaro Ramos narrando a vida amorosa dela na adolescência e o quanto parecia com a minha. A Becky é aquela pedra que volta e meia entra no nosso sapato.

Imagem da pintura "A Redenção de Cam" do pintor Modesto Brocos, de 1895 que, segundo a wikipédia: "aborda as teorias raciais do fim do século XIX e o fenômeno da busca do 'embranquecimento' gradual das gerações de uma mesma família por meio da miscigenação."

Além da Becky, outro grande problema na vida da mulher negra é de ordem estética. Hoje, aumentou o movimento de resistência à imposição social de alisar o cabelo e embranquecimento.

Contudo, na minha infância, nem na da Bey, esse movimento era tão difundido. Não havia valorização - e ainda não há como deveria - dos traços de origem africana, principalmente, o nariz do Michael Jackson no começo da carreira, o cabelo afro e os lábios carnudos, como a Bey evoca nos versos de “Formation”.

GIF do clipe "Formation" em que aparece Beyonce cantando (em tradução livre): "Eu gosto do meu nariz negro com narinas estilo Jackson Five". Fonte: https://media.giphy.com

Por quase 20 anos, eu, por exemplo, alisei o meu cabelo ou usei apliques de cabelo liso para me sentir mais bonita e/ou ser socialmente aceita no meio em que eu vivia. Ressalto que eu cresci cercada pelo racismo latente e velado da sociedade brasileira.

Por muita sorte, eu cresci numa família de classe média e sempre estudei em boas escolas. E, por estar no Brasil, eram escolas particulares nas quais a maioria esmagadora dos meus colegas eram brancos. Conto nos dedos os meus amigos de escola que eram negros.

Por conta do meio em que eu vivia, eu sempre me cobrava de me portar de uma determinada forma, de me calar quando me sentia ofendida ou fingir não escutar algo que eu achava ofensivo, de ter o cabelo liso e de não ser tão “bootylicious”. Eu não chegava a me odiar, mas também não me amava.

Beyoncé e suas daçarinas na apresentação do Super Bowl, honrando a estética negra, o cabelo black power e a história dos Panteras Negras. Fonte: www.cbc.ca

Somente de uns 4 anos pra cá, quando passei a me interessar e informar mais sobre as minhas raízes, que eu resolvi assumir o meu cabelo como ele é naturalmente e alternando com “box braids” quando enjoava do cabelo.

LEMBRANDO QUE DREADS E BOX BRAIDS SÃO COISAS DISTINTAS, vide fotos abaixo.

Hoje, eu  e muitas meninas com histórias parecidas com a minha ostentamos um black lindo com muito orgulho, como a própria Bey diz em “Formation”.

A atriz e cantora Zendaya Coleman exibe seus dreads na carrimônia do Oscar 2015. Fonte: http://i2.cdn.turner.com/

Beyoncé, de box braids, no clipe de "Formation". Fonte: www.vox.com

Somado à estética afro, “Lemonade” coloca em pauta uma discussão de acirrar os ânimos: o extermínio da juventude negra. Por morar em um país de passado escravocrata, infelizmente, existe a ideia de que o negro e pobre, necessariamente é bandido ou um potencial criminoso, e que o sendo ou não ele deve ser morto. Bey denuncia esse racismo que grita e sangra a cada batida policial com as músicas “Foward” e “Freedom”. 

Assim como os jovens homenageados no filme, aqui no Brasil também acontece. E acontece todo dia, principalmente nas periferias, onde a lei que importa é a lei da porrada. Nós vimos isso com os jovens assassinados em Costa Barros, com o menino Eduardo morto no Complexo do Alemão, com a Cláudia que foi arrastada pelo carro da PM e com tantos outros. 


Protesto do Movimento Black Lives Matter em Julho de 2015 em Toronto, Canadá. A campanha foi tão forte que não se restringiu aos Estados Unidos. Fonte: www.crisismagazine.com

“Lemonade” também explicitou a formação e a educação da mulher negra. Nós mulheres negras somos educadas para não desistir da luta. Nós fomos educadas para ser haste fina, como diz Bethânia, “qualquer brisa verga, nenhuma espada corta”.

Bey canta em “Daddy Lessons” que seu pai (o meu também) a educou para ser uma mulher forte, independente e que luta pelo que é seu. Ela foi educada para lidar com o machismo e racismo no meio em que vivia e no qual construiu a sua carreira.

Beyonce em "Daddy Lessons", parte do álbum visual "Lemonade". Fonte: http://www.vox.com

Por fim, Bey expõe as mágoas vividas na sua vida amorosa com seu marido. Para os que duvidavam, ela é uma mortal como nós. Fugindo das fofocas, ela faz uma crítica pesada e nas entrelinhas à ideia de que a vida é perfeita e que casais se amam o tempo todo.

Ela desconstrói isso, e arrisco dizer que ela desconstrói o pensamento de que a mulher deve ser “bela, recatada e do lar”. Ela xinga, ameaça ir embora, joga na cara que tem o próprio dinheiro, sofre, perdoa, dá uma última chance e segue em frente. Ela não guarda nada. Ela se recusa a ficar calada e sofrendo. Contudo, no final de toda essa tormenta, ela prega que o amor é a melhor arma para acabar com o mal do mundo. A Bey nos deu essa lição com as faixas “Hold Up”, “Don’t Hurt Yourself”, “Sorry”, “Sandcastles” e “All Night”. 

Jay Z e Beyoncé em "Sandcastles", parte do álbum visual "Lemonade". Fonte: paulomessa.com

“Lemonade” é um álbum maduro de uma artista a qual eu coloco no mesmo patamar que Prince e MJ.  Esse é o melhor álbum da Beyoncé. Ele me representa e acredito que represente a luta de muitas negras no mundo em que vivemos. 

“Lemonade” me trouxe paz porque eu vi que não estou sozinha nessa guerra.

“Lemonade” me deu mais força para não abaixar a cabeça e seguir em frente lutando pelos meus ideais sem jamais perder a essência do que eu sou. 

“Lemonade” aumentou a minha confiança em mim mesma e o meu amor pela minha cor, cabelo e curvas. 

“Lemonade”  é mais que um álbum, ele é uma revolução.

"Let's keep running 'cause winners don't quit on themselves."
"Vamos continuar correndo porque vencedores não desistem de si mesmos"
(Tradução livre), Trecho da canção "Freedom", da Beyoncé.

Beyoncé em performance ao vivo de "Freedom" (Live in Miami Formation Tour 2016).


Esthela Costa: Negra, Fã da Beyoncé, Feminista, Pole Dancer e Estudante de Direito nas horas vagas com futuro incerto. Virginiana com meio céu em Leão, filha de Oxum Opará, como a Beyoncé.



E aí, gostaram? Não esqueçam de compartilhar. Até a próxima!

Beyonce em "Hold Up", parte do álbum visual "Lemonade". Fonte: www.popsugar.com

1 comentários:

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Unknown delete maio 03, 2016 2:06 AM

Crítica apenas espetacular! Não te conheço, Esthela, mas já te considero pacas e bato palmas ao seu engajamento e respeito às nossas origens.

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